(Re)Descobrindo Crianças
Esta é a versão em português da palestra que abriu a Conferência da Fundação Violet Solomon Oaklander em 12 de maio de 2018 (Malibu, Califórnia), e foi apresentada também em 2018 no XVI Encontro Nacional de Gestalt Terapia – XIII Congresso Brasileiro da Abordagem Gestáltica (Curitiba, Paraná) realizado entre 19 e 21 de julho.
2018 Violet Solomon Oaklander Foundation
Weekend Conference – May 12 & 13
Serra Retreat Center Malibu, California
XVI Encontro Nacional de Gestalt-Terapia
XIII Congresso Brasileiro da Abordagem Gestáltica
Curitiba, Paraná 19 a 21 de junho de 2018
(Re)Descobrindo Crianças
Cassiana Silva Castro (Curitiba, Paraná)
Há alguns anos, não muito tempo depois de ter realizado o treinamento com Violet em Santa Barbara em 1995, atendi Maria, uma menina de 8 anos. A mãe não sabia como lidar com os medos dela. Ela tinha medo de extraterrestres, o que a impedia de dormir sozinha em seu quarto. Maria foi adotada pelos seus pais ainda bebê com alguns dias de vida e o que se passava na vida dela nesta época, é que sua avó, com quem ia dormir de vez em quando, havia falecido. O medo de extraterrestres apareceu dias depois da morte da avó, pouco tempo depois seus pais me procuraram.
Eu estava muito empolgada com tudo que tinha vivido em Santa Barbara, tantas coisas que queria por em prática no atendimento a crianças e adolescentes, a experiência com o treinamento havia sido riquíssima para uma terapeuta que na época tinha apenas 3 anos de profissão.
Então, não me lembro em qual sessão isso aconteceu, mas foi logo nas primeiras, pedi a Maria que desenhasse uma família, no melhor estilo Violet Oaklander, disse: “…pode ser qualquer tipo de família, de coisas, ou de bichos,…qualquer tipo de família…”. Assim, Maria desenhou uma família de frutas, bem como a dela, o pai, a mãe e três filhinhos. Começamos a conversar sobre a família e ela me disse que morava na geladeira, o desenho mostrava uma cozinha e a geladeira aberta com a família na prateleira. Neste momento, me veio naturalmente, de maneira muito espontânea, uma imagem, que, sem hesitar, desenhei em outra folha de papel: um ovo frito com luzes ao redor, como um disco voador, e disse a ela que o OVONI frito ia invadir a geladeira voando diretamente para dentro dela. Neste momento ela começou a dar muita risada e eu também. Rimos muito e o ovo levou um golpe do tomate, destruindo assim a sua gema que fez uma tremenda sujeira na cozinha deixando a dona da casa intrigada.
Na semana seguinte a mãe queria parar a terapia porque Maria havia dormido todos os dias sozinha em seu quarto. Ainda sem entender muito bem o que havia acontecido, e ainda bastante surpresa com a intensidade daquele fenômeno, pedi para a mãe algumas sessões a mais, pois não achava que meu trabalho havia terminado, mas que estava apenas começando. Nas sessões seguintes pudemos trabalhar seus sentimentos de perda com relação à morte de sua avó, e o medo da perda, porque o medo inicial de extraterrestres era apenas uma manifestação segura de um medo muito maior e real. Acredito que todos aqui têm uma ideia do que aconteceu. Não quero agora falar sobre o processo terapêutico da Maria, mas sim do fenômeno, do surgimento da imagem e seu desdobramento.
Como disse anteriormente, na época não sabia exatamente o que havia acontecido, e anos depois ainda percebo a força desta imagem e desta sessão ao me lembrar dela com tantos detalhes. O que faz um fenômeno permanecer por tanto tempo? Seguramente tem a ver com o impacto que a experiência tem em nossas vidas, bem como com a qualidade que imprimimos ao vivê-la.
Ao usar recursos projetivos nos apropriamos de entendimentos muito profundos e a mudança de perspectiva contribui muito em nosso processo de assimilação. Como seria um diálogo imaginário com esta imagem do “OVONI frito”? só de brincadeira, imaginei algo assim:
Cassiana: – Olá!
Imagem: – Olá!
Cassiana: – Quem é você?
Imagem: – Sou uma imagem…
Cassiana: – Olá imagem! Como você é?
Imagem: – Agora sou um desenho de um ovo frito voador… mas sou um tipo de imagem que muda…
Cassiana: – Que tipo de imagem que muda você é?
Imagem: – Sou uma imagem pop up.
Cassiana: – Hum… e o que uma imagem pop up faz?
Imagem: – Eu emirjo de um fundo num momento específico.
Cassiana: – E o que faz você emergir?
Imagem: – É que eu me encho de energia a tal ponto que não posso me conter, ai eu apareço.
Cassiana: – Parece que tem muita força aí!… E que lugar é este em que você aparece?
Imagem: – Eu apareço em um espaço criativo.
Cassiana: – Você mencionou um momento específico, que momento é este?
Imagem: – É um momento onde conexões acontecem, há uma sintonia… há espontaneidade.
Cassiana: – E o que acontece quando você aparece?
Imagem: – Ah! Como saber?! Mas eu te digo uma coisa, quando eu apareço eu trago oportunidades, movimentos, transformação…
Cassiana: – Uau!
E por aí vai… Eu poderia continuar este diálogo, mas creio que não seja necessário. Vamos combinar de ficar com a dimensão puramente ilustrativa e esquecer por um momento que somos terapeutas, vamos deixar as projeções de lado, está bem?
A imagem que surgiu nesta sessão com a Maria abriu uma série de possibilidades, assim como é num processo dialógico. Este fenômeno reuniu um conjunto de processos que mostrou ser bastante poderoso. Posso citar aqui pelo menos 3 deles que considero bastante significativos:
1) Contribuiu na formação do vínculo terapêutico;
2) Diluiu o medo como resistência;
3) Abriu o caminho para o trabalho sobre as suas perdas e o luto.
Embora eu os tenha separado aqui para melhor ilustrar, ao olharmos para esses 3 itens, percebemos que são totalmente inseparáveis, e que se conectam totalmente numa relação conjunta e interdependente.
Nesse caso vimos a imagem como figura surgindo em um campo, num espaço criativo, sendo construída por um vínculo terapêutico e ao mesmo tempo, contribuindo em sua construção. Em sua característica genuína e sua natureza espontânea, não há lugar para nada mais a não ser o que simplesmente é. Não há uma crítica ou pensamento teórico, nada. Uma ação totalmente sustentável, um recurso que preenche em sua totalidade o que propõe, mobilizando a energia e conduzindo à awareness.
Muitos anos se passaram, e a maneira como as crianças lidam com as imagens hoje sofreu transformações, algumas vezes elas trazem suas imagens em fotos, ou imagens de diálogos com amigos e família nas telas de seus celulares, para contar algo que aconteceu, como se as palavras não fossem o suficiente, quando muitas vezes me parece que algum evento poderia ser facilmente relatado sem o recurso da imagem mostrada. Elas parecem, algumas vezes, não acreditar que seu mundo possa ser entendido sem ser pela tela do celular, especialmente os adolescentes. E quando mostro isso a elas, percebo um interessante ar de satisfação e relaxamento. O espaço terapêutico é especial também pelas suas possibilidades. Não repetir as mesmas formas da escola ou da casa, mas fazer do consultório um lugar de alternativas, usá-lo plenamente como espaço criativo, e único, é atualmente um recurso precioso para promover o bem estar das crianças e adolescentes. Vou explorar um pouco mais este tema contando a história de Pedro.
Ano passado, Pedro de 9 anos chegou à sua sessão bastante entusiasmado, querendo me mostrar a fotografia do seu cachorro. (Como atendo em minha casa, meus pacientes sabem que tenho cães e que gosto muito de cachorros). Quando pegou o celular de seu pai para me mostrar a fotografia, estava descarregado e ele ficou muito frustrado. Pediu ao pai que carregasse a bateria do celular enquanto acontecia a sessão, para me mostrar a foto antes de ir embora. Entramos no consultório e propus que desenhasse o seu cão, e ele me disse que não saberia desenhá-lo tão bem, ao que respondi que isso não era importante. Ele desenhou seu cão e ele mesmo ao lado. Ao observá-lo, tive a sensação de que pintava seu desenho com cuidado e concentração. Quando terminou me disse que tinha gostado e que ficou melhor do que imaginava, conversamos sobre as brincadeiras que eles gostavam de fazer e o que estariam fazendo no desenho, Pedro até me perguntou se eu não iria propor que ele fosse o cachorro dele no desenho, respondi que não tinha pensado nisso e perguntei se ele gostaria de ser, me disse que não. Levou o desenho para casa, mostrou ao seu pai que aguardava na sala de espera, e pediu a ele para fazer um quadro do desenho para pendurar em seu quarto. Saiu sem me mostrar a foto do celular e na sessão seguinte trouxe o cachorro para eu conhecer.
Não foi difícil perceber a força da imagem desenhada pelo Pedro, basta imaginar como teria sido se ele tivesse conseguido me mostrar a foto pelo celular. Provavelmente me mostraria rapidamente uma sequência de fotos e devolveria o celular ao seu pai sem nos envolvermos na experiência com a profundidade que conseguimos com o seu desenho. Não sei se concordam comigo, mas normalmente quando me mostram fotos pelo celular tudo acontece muito rápido e em grande quantidade.
Pedro iniciou seu processo terapêutico por ser bastante ansioso e enfrentar dificuldades de atenção e aprendizagem na escola. Fiquei surpresa pela forma como realizou seu desenho, sem parar, escolhendo as cores, cuidando para não passar a pintura dos contornos do desenho, em seu próprio ritmo, não falou enquanto desenhava. Pareceu concentrado e envolvido com o que estava fazendo. Tanto seu pai quanto seus professores na escola sempre relataram o quanto Pedro se distraía nas atividades facilmente.
Os desdobramentos dessa sessão em seu processo terapêutico seguramente não posso alcançar na sua totalidade, acredito que nunca poderemos, posso, no entanto, destacar alguns destes processos:
- Ele se percebeu capaz de se concentrar, pois só escutava de todos ao seu redor que não era capaz de se concentrar,
- Conseguiu se sentir orgulhoso de uma produção sua, se apropriou do seu desenho com satisfação,
- Abriu novas possibilidades de viver suas experiências, trazendo seu cão para a sessão, o que percebi como aumento em seu suporte interno.
Fenômenos são observáveis dinamicamente, a cada novo olhar, novas descobertas são possíveis. Assim, esse caso não significa que a fotografia seja uma imagem “enfraquecida” e o desenho uma imagem “forte”, não se trata disto. Você poderia até pensar: e se foi o Pedro quem fotografou o seu cachorro? Ele não ficaria desapontado por eu não ter pedido para ver a fotografia? Afinal também teria sido uma produção sua. Ter ficado com a imagem que o Pedro qualificou, não significa ter desqualificado a outra. Fiquei com a energia dele onde ela estava e se ele tivesse lembrado de me mostrar a foto eu teria acompanhado. Porém, está justamente aí, tanto na escolha que fez, quanto em ter feito uma escolha, o movimento significativo para o seu bem estar.
Neste ponto me recordo da pergunta de Debby à Violet descrita na introdução para a edição do Gestalt Journal, “Como você faz as pessoas se sentirem melhor?” […] ao que, na sequência do diálogo, Violet reflete “Eu passei muito tempo tentando responder a pergunta de Debby. Hoje, eu não posso dizer honestamente que eu não sei o que faz as pessoas se sentirem melhor, uma vez que estou muito mais próxima da resposta do que eu estava naquela época”. (Oaklander, V. Windows to Our Children 1988).
A pergunta de Debby, o diálogo que se segue, e a reflexão da Violet sobre esta pergunta, se tornaram para mim uma espécie de guia, algo como uma bússola ou um farol. É necessária a reflexão, buscar a resposta é um caminho emocionante, respondê-la implica na imposição de um limite injusto sob o risco de aniquilar uma pergunta fundamental e dinâmica. A construção da resposta é a imagem permanente do processo de amadurecimento profissional e pessoal, aqui novamente podemos ver o processo dialógico acontecendo.
São 22 anos que separam as imagens de Maria e Pedro, estas duas histórias. Neste tempo, foram muitas outras, nem sempre as vivi com o mesmo entusiasmo, a energia oscila, a honestidade é que sustenta o vínculo, contato é o essencial. O treinamento com Violet me mostrou um caminho, o que eu construí também me moldou como terapeuta e pessoa. Contemplo minha jornada com orgulho.
E assim como Debby, perguntei à Violet:
Como você fez isso Violet? Como conseguiu criar um método eficiente e poderoso para atender crianças e adolescentes em culturas tão diferentes, que atravessa fronteiras e o tempo, que sobrevive aos anos de revolução tecnológica sem sofrer qualquer arranhão, e por isso se torna um método ainda mais forte e fundamental? Por favor, não responda. Obrigada.