Reflexões sobre as relações na atualidade – 2013
Em 1923, com a primeira edição do famoso livro do filósofo austríaco Martin Buber “Eu-Tu”, foi possível compreender a existência humana através da relação. Para Buber a existência humana acontece na relação definida por duas palavras básicas: Eu-Tu e Eu-Isso, de acordo com a atitude que temos. Cada parte de uma palavra básica pressupõe a outra parte:
As palavras básicas se dizem com o ser. Quando se diz Tu, se diz também o Eu do par Eu-Tu. Quando se diz Isso, se diz também o Eu do par Eu-Isso. Só se pode dizer a palavra básica Eu-Tu com todo o ser. Nunca se pode dizer a palavra básica Eu-Isso com todo o ser. [1](Martin Buber, 2006 p11).
A relação Eu-Tu é espontânea e genuína, envolve a mesma disponibilidade entre eu e o outro. Como é da natureza de toda relação, existe por um determinado tempo, compreende o tempo do contato e do afastamento. Isso quer dizer que relação é um processo dinâmico, feita de encontros. Há a consciência do outro, ou seja, de sua individualidade e singularidade. Somos uma parte do outro e o outro é um fim em si mesmo e não um meio para atingir um fim. Em outras palavras, a pessoa existe por ela mesma e não para nos fazer felizes. Podemos até ser felizes juntos, mas cada um por si. Para ilustrar, podemos dizer que a relação que o professor tem com seu aluno é uma relação Eu-Tu, ao educar, o aluno é um fim em si mesmo, e não um meio para se chegar a um fim. Por outro lado, a relação Eu-Isso ocorre quando o outro é um meio para se chegar a um fim. Em sua existência o ser humano relaciona-se com objetos, pessoas, formas ou signos aos quais refere-se como Isso, ou seja, tudo que não é Tu. Para entender melhor, a relação que o aluno tem com seu professor é uma relação Eu-Isso, pois o professor é um meio para o aluno chegar a um fim que é o conhecimento. É, portanto a partir da relação Eu-Isso que se dá o desenvolvimento das descobertas científicas, tecnológicas e de todos os tipos de conhecimentos. Assim, também essencial e fundamental para o ser humano. Então, Eu-Tu e Eu-Isso são as duas dimensões das relações humanas. A atitude do Eu diante do mundo é a mesma diante de si mesmo, a relação é reciprocidade.
Portanto é através dessas duas dimensões das relações humanas que construímos nossa identidade. Passamos a vida construindo e redefinindo quem somos a partir do que aprendemos e assimilamos de nossos encontros, nossas relações e escolhas e quanto maior a consciência deste movimento e disposição para esta conscientização maior o amadurecimento e
enriquecimento das experiências da vida. Gosto de pensar que cada aspecto do que somos é construído por nossas experiências e por nossas relações.
Com quem nos relacionamos quando nos comunicamos através do computador? Como nos relacionamos quando participamos em uma rede social? Como estabelecemos bases e critérios para escolhas diante de uma quantidade de possibilidades tão vasta dispostas na internet que nos faz lidar com números que muitas vezes indicam dimensões que sequer conseguimos imaginar? Sem falar que tudo isso é feito rápido, muito rápido.
A princípio não são perguntas difíceis de responder. Acredito que muitos concordam que há um predomínio na relação Eu-Isso e, claramente há superficialidade ou empobrecimento nas definições de critérios de escolhas. A pronta resposta não deve satisfazer a pergunta, pois a permanência dessas e muitas outras questões da atualidade é que pode efetivamente nos direcionar em novas buscas.
O predomínio da relação Eu-Isso não é o problema, pois as palavras base não pressupõem aspectos negativos ou positivos. O problema que vejo é que onde poderia haver a relação Eu-Tu, tão fundamental na formação da identidade quanto a relação Eu-Isso, há um empobrecimento e um predomínio de relação Eu-Isso, substituindo uma pela outra perdemos oportunidades, portanto há um grande desequilíbrio e é aí que vejo um problema. Para que vocês melhor compreendam, mencionarei dois dos aspectos que, a meu ver, com as redes sociais e a nova tecnologia, nos fazem perder oportunidades de termos relações mais equilibradas: espontaneidade e obrigatoriedade de resposta. Vejo muitos adultos comentando que “encontraram” amigos de infância no facebook, e quando exploro um pouco a conversa sobre este encontro, normalmente ela é resumida em “foi legal”, “foi bem rápido porque eu tinha que…”, “ele ou ela está trabalhando nisso ou aquilo”, “ele ou ela casou, tem filho…”, etc. Dificilmente aquela frase de fim de papo “vamos nos encontrar?” acontece. Você pode dizer que um encontro entre amigos de infância na rua é a mesma coisa. Não vejo assim. Um encontro na rua tem espontaneidade e surpresa, portanto é vivido de outra forma. Os encontros na vida têm seu tempo, como vimos. E se estar com aquela pessoa pertenceu apenas àquele tempo na vida? De certa forma “encontros” no facebook podem “forçar” uma reentrada de pessoas em nossas vidas que não têm o mesmo sentido que o de um encontro ou reencontro verdadeiramente espontâneo. Adiciona-se o amigo e pronto, é mais um em uma lista de nomes que só cresce em quantidade e dificilmente em qualidade de relação. Outro aspecto é a obrigatoriedade de resposta. Não é mais aceitável que não se responda quase que imediatamente a uma chamada, seja de mensagens ou de voz por celulares, emails, redes sociais. O tempo de cada um é facilmente confundido com o tempo do outro. Se não respondo em alguns minutos a uma pessoa que me envia uma mensagem, ela chamará novamente e ainda é necessário justificar a demora pela resposta. Estes dois aspectos que menciono aqui estão entre muitos outros que vejo como movimentos que colaboram para o desequilíbrio dinâmico das relações.
Ampliando um pouco o ângulo das relações, somos adultos de uma geração que vimos e vemos uma mudança enorme de referências e que estamos fracassando na sustentação de valores fundamentais como tradição e autoridade, por exemplo, em nossas relações com as gerações mais novas. A rapidez com que objetos são simplesmente abandonados pelo lançamento de outro modelo, o exagero de consumo alimentado pela facilidade e velocidade de aquisição de novas tecnologias, marcas, tipos, cores, enfim, muito de tudo, nos tira de um lugar de existência e nos joga em um lugar de aparência.
Não há tempo de construir uma história de um objeto que rapidamente é descartado e, consequentemente, não mantém seu valor. Assim, o que tem ou teve valor para o adulto não é algo admirado e valorizado pelo adolescente de hoje. Em termos de relação entre adolescentes e adultos não parece haver aí uma novidade, mas a diferença da atualidade em relação a outros tempos não é sutil. A discussão sobre a atualidade é vasta e não cabe aprofundá-la aqui. Importante apenas salientar que uma das tarefas do adolescente na construção de sua identidade como adulto é superar os pais, a partir do reconhecimento de sua autoridade e referência. Com o enfraquecimento destes valores e a horizontalidade nas relações, a superficialidade e empobrecimento nos critérios de escolhas, como exatamente o adolescente percebe o que precisa superar?
Resisto à tecnologia como resisto a tudo que é imposto de forma a não dar espaço para reflexões, o que não significa que me oponho radicalmente a ela. O problema não é a tecnologia ou a internet, mas a forma como fazemos uso delas. O que incomoda é como facilmente as novidades são absorvidas sem passar pelo crivo das nossas necessidades como se estivéssemos sempre satisfazendo as necessidades de fabricantes e vendedores, ou fazendo nossa necessidade a partir da necessidade deles. Como prontamente tendemos a abandonar hábitos tão fundamentais para nossos encontros, crescimento e experiências sem alcançar a profundidade das coisas. A padronização imposta pelo consumo força a definição frágil de figuras que permanecem nítidas por muito pouco tempo em um fundo de diversidade caótica.
Como adultos, pais, professores, profissionais em contato com adolescentes e crianças precisamos construir em nossos encontros figuras nítidas e duradouras. Onde há encontro, há transformação. E é de encontros, relembro a todos, que as relações são feitas.
Fazer bom uso dos recursos que dispomos é sempre de extrema importância. Somos capazes de construir as mais belas relações e, ao mesmo tempo, a solidão mais profunda. Não teremos fracassado com as gerações mais novas se, com todos os recursos fantásticos que temos, soubermos viver e transmitir o essencial que é tentar ser seres humanos melhores.
[1] BUBER, M. Yo y Tú y otros ensayos. Buenos Aires: Lilmod, 2006